segunda-feira, 13 de julho de 2009

HISTÓRIA BASEADA NA VIDA DE UM EX-PRESIDIÁRIO

Sidney Francisco Sales tinha todos os motivos para ser um fracassado. Nasceu pobre,negro e se transformou num bandido de grande periculosidade

“Pai Nosso, que estas nos céus,
Santificado seja o teu nome;
Venha Teu reino, seja feita a Tua vontade,
Assim na terra como no céu...”

O dia 02 de setembro de 1989 foi corrido e de muitos acertos. Todos estávamos decididos, poderosos, armados e cheios de confiança. O líder do grupo iniciou a reunião com a reza do Pai Nosso. Acreditávamos que seríamos abençoados e protegidos das conseqüências que o mundo do crime trás. Só assim, guiados pela mão de Deus poderíamos sair para mais uma missão, entre tantas, que já havíamos cumprido. Dessa vez, tinha sido escolhida a Ponte dos Remédios, que cruza o Rio Tietê, na cidade de São Paulo.

Essa ponte constitui parte do sistema viário da Marginal Tietê, a via possui quatro pistas, divididas em dois sentidos cruzando o Rio Tietê. São 300 metros de cumprimentos sustentados por pilares que fazem a interligação das Ruas Silva Airosa e Major Paladino, na Vila Leopoldina, à Avenida dos Remédios, na cidade vizinha de Osasco. O ponto escolhido para o assalto, dessa vez, foi na saída da ponte, na região de Osasco. Tudo estava planejado nos mínimos detalhes: rádio de comunicação; roupas apropriadas; automóveis para a fuga; armamentos e muita munição.

Ao analisarmos o planejamento nada poderia sair errado. O Jagunço, nosso informante, passou todas as características do caminhão e que no máximo em cinco minutos estaria passando no ponto determinado. Alertou-nos: “Lá vem o caminhão...!” A carga era muito valiosa, estava estimada em setecentos e setenta e cinco mil cruzados novos em carga de AZT - remédio contra a AIDS. A empresa era a Transdroga, especializada em transportes de remédios. Estávamos prestes a pôr a mão em toda àquela grana. Para mim, então nem se fala, aos 19 anos ter a minha parte em dinheiro vivo era o que mais desejava. Iria dar presente para minhas namoradas e deixá-las feliz. Após o assalto era só levarmos o motorista, o ajudante para o cativeiro e entregar a carga ao receptor em Rudge Ramos, no ABC Paulista.

Levamos os reféns a um cativeiro no bairro de pedreira, e pagamos Cz$ 1.000,00 para essas pessoas cuidarem deles. Partimos, então, para levar a carga ao local de receptação. Até àquela hora estava tudo perfeito, nem sinal dos “homens”. Porém, não demoraria muito para percebermos que “casa tinha caído”. A operação deu com os “burros n’água”. A Polícia já estava aproximadamente oito meses no encalço da quadrilha, descobriu os planos de ação e de maneira brilhante estava estrategicamente pronta para interceptar, agir e nos render.

Logo após a entrega da carga, prendeu Nelson e o Wilson. Depois de os torturarem nos “caguetaram”, o que possibilitou à polícia fazer o flagrante no local onde estávamos dividindo o prêmio. A casa ficou toda cercada. Eram muitos policiais. Invadiram o local, nos algemaram e nos levaram.

Adolescência conturbada
Sidney Francisco Sales tinha todos os motivos para ser um coitado. Nasceu pobre e negro, porém poderia locomover para qualquer lugar, sem empecilhos. Paulistano de um bairro da periferia chamado São José. Filhos de pais analfabetos e trabalhadores de roça, todavia, especialistas em integridade e honestidade. Seu Sebastião Francisco Sales e dona Maria da Conceição Sales migraram de São João Del Rei, MG, para tentar uma vida melhor na cidade de São Paulo.

Como frutos do casamento, além de Sidney, nasceram quatro meninas. A vida na capital colocou vários obstáculos que impediram acompanhar o crescimento dos filhos de perto. Os meninos cresceram quase sozinhos, pois as atividades de construção civil e doméstica dos pais tomavam todo o tempo. Mesmo assim, a renda era insuficiente para atender as necessidades de casa. Por ser o único filho homem recebia um pouco mais de atenção, amor e carinho de seu pai e isso tornou sua infância um pouco melhor. Sua mãe era mais severa e disciplinadora. Devido os perigos que a rua oferecia obriga que os filhos ficassem trancados em casa.

Porém, por Sidney ser uma criança travessa, pulava a janela e ia para o campinho jogar bola. Queria seu espaço, encontrar com os amigos, buscava a liberdade. Não gostava de ficar em casa de jeito nenhum. Às vezes, se isso não bastasse, quando seu pai chegava do serviço, muitas vezes estava embriagado – tinha muitos problemas com o alcoolismo -, discutia com a mulher e queria bater nos filhos. Na escola havia comparações de roupas, material escolar, mochilas que sempre eram melhores do que as coisas que Sidney usava. Calçava uma “conga” – uma espécie de sapato de lona -, e os outros alunos tênis de marca; levava o material escolar num saco de arroz e essa situação causava um complexo de inferioridade muito grande.

Todavia, sempre procurou estar entre os melhores alunos da sala. Mas, na oitava série, já havia tendência para a rebeldia, cabulava aula, e a repetência foi inevitável. Aos quinze anos foi trabalhar na Escola Poti Mirim, ligada à Escola Albert Einsten. Começou com os serviços gerais da escola, depois passou para auxiliar o motorista de Kombi que buscava e entregava os alunos. Quando recebia o salário entregava tudo na mão de sua mãe, o qual usava parte para pagar o mercadinho, o gás, a luz e água. E se sobrasse algum valor ela me repassava.

Essa situação o deixava muito revoltado porque não dava para comprar as coisas que queria, por exemplo, tênis, roupas e sair para as festas. Cada vez mais a revolta aumentando em seu coração; e a ambição tomava conta de sua vida. Ir ao shopping era um problema, pois suas roupas não eram adequadas e sentia-se inferior aos demais. Aos quinze anos completou a oitava série, e para iniciar o colegial matriculou-se no período noturno. Quando terminava a aula ia para a casa de uma tia que ficava ali próximo, na favela do Bairro da Pedreira, onde morava seu primo, Niltinho, que nessa época já estava envolvido com drogas. Numa dessas visitas lhe fez um convite:
- Ney, vem aí cara. E aí mano, quer experimentar um barato diferente?
- Que barato é esse? – Perguntei.
- Maconha, baseado. Que um?
- E aí, é bom mesmo?
- Claro, prova aí...

Nesse dia teve o primeiro contato com as drogas, fumou o primeiro cigarro de maconha em companhia do primo. Não demorou muito para se tornar um dependente químico. Agora, além das coisas que queria comprar para compensar o complexo de inferioridade, tinha que sustentar o custo da droga. E cada vez mais, as coisas iam ficando difícil porque o dinheiro era muito pouco. Os amigos sabiam da habilidade de dirigir carros e motos, por isso convidavam para participar de diversos delitos e pequenos assaltos. A carência material, a ambição de ter coisas que nunca pode ter – carro, moto, casa própria -, levou Sidney a encurtar o caminho para conseguir tais sonhos.

Nessa altura de sua vida, aos 16 nos, a escola já não fazia parte de sua rotina. O que reinava em sua mente era o estímulo para conquistar muita coisa em pouco tempo e sem trabalho. Por isso, foi levado a aceitar outros convites para assaltar pessoas, comércio, lojas e posto de gasolina. Chegou o ponto que não teve outra escolha a não ser entrar de cabeça “no negócio”, e partir, realmente, para a criminalidade. Logo depois conheceu os amigos Rubens, Carlinhos, Gênico e Fernando, que formavam uma gangue, e lhe convidaram para participar de assaltos. Era uma quadrilha profissional e especializada em roubos de agências e postos bancários 24 horas dentro de empresas.

Certo dia conversaram com Sidney que deveria deixar as drogas, pois tinha que estar lúcido ao dirigir o veículo usado nos assaltos e, também, evitar o agravante caso fosse pego em flagrante pelos policiais. Sua função na quadrilha era importantíssima, por isso, tinha que estar “limpo” para levá-los e dar fuga do local do assalto. Sendo assim, seguiu as orientações do grupo tornando- se um motorista responsável e qualificado. Passou, então, a ir somente aos finais de semana, quando estava de folga, na favela do Bairro da Pedreira, ao barraco do iniciante no mundo das drogas – o primo Niltinho -.

Entre amigos
- E aí, bonequinha? Tá com medo? Vem ficar aqui na minha cela que, hoje mesmo você vira picadinho...
Eles gritavam em tom de ameaças, dizendo que iam nos cortar, matar... Os carcereiros nos advertiam para não nos influenciarmos com drogas, armas, facas, estiletes ou com quadrilhas formadas dentro do sistema carcerário, porque, se não eles usariam canos de ferro, correntes, cabos de aço e outras armas para nos bater. Certo dia apareceu alguém e perguntou:
- Tem alguém da zona sul ai? Aqueles homens começaram a gritar:
- Tem sim. Capão Redondo, Vila Joaniza, Nakamura, Santo Amaro, Jardim Ângela, Jardim Mírian, Parelheiros, Nove de Julho.
-Tem alguém do Grajaú, São José? Nessa hora me chamaram e eu cheguei ali perto da grade e o rapaz me perguntou:
- De onde você é?
- Eu sou do São José, respondi.
-Você não conheceu nem um Ney por lá?
- Poxa, sou eu mesmo.
- Quem ta falando aí?
- Aqui é o Judas, irmão da Tereza, do Jardim das Imbuias.
- E aí, como ta, mano? Ouvi falar muito de você. Inclusive nós mandávamos cigarro pra você. Você recebeu as encomendas?
- Claro tudo em cima. Tudo Tranqüilo.
- Quando sair daí, você vem morar conosco, na nossa cela.
Mas logo em seguida apareceu João Telo, um traficante que eu conhecia do Jardim Iporanga, próximo ao Bairro Parelheiros, e o Magrão, o Serjão, da Chácara Tanay; depois veiram alguns da estrada do M' Boi Mirim, o Bezerra, outros do Jardim Ângela, Nakamura; e apareceram alguns da Joaniza: o Tal, o Bongo, o Boy. Todos eles queriam que eu fosse morar com eles, pois todos eles foram ajudados por nós, quando estávamos em liberdade e, eles, presos. Como Judas havia me convidado antes, fui para a cela dele.

Carandiru
Desde as primeiras incursões no mundo do crime, passou por experiências de sofrimentos, violência, tráfico de drogas, assaltos a bancos, roubos de carga e muitas mulheres. Fez carreira na escola do crime. Foi preso, torturado, amaldiçoado. Afundou-se de corpo e alma nas drogas. O assalto na Ponte dos Remédios foi o passaporte para o inferno do Carandiru.

Ficou detido entre as paredes fedidas daquele lugar. Condenado a seis anos e quatro meses de reclusão em regime fechado. Ficou no Pavilhão 9, o mais abarrotado da cadeia, que abrigava 2,5 mil detentos. Ali existem duas celas de triagem e mais de trinta prisioneiros esperavam sua vez. Enquanto isso dormiam no chão e ficavam espremidos. Os presos só desciam para receber visitas aos domingos ou as quartas, das oito às quinze. Assim que chegavam os novatos, os outros subiam para ver se entre eles há amigos ou inimigos. Nesse caso, o desafeto é ameaçado de morte.

No dia 2 de outubro de 1992 ocorreu uma briga entre dois detentos no complexo penitenciário. A situação foi incontrolável e se propagou rapidamente para outros pavilhões. Sidney estava no quinto andar quando a Tropa de Choque da Polícia Militar entrou atirando, parecia mais uma festa de festim, era bala para todo lado. Quando desceu para a galeria viu corpos esticados no chão correu rapidamente para sua cela, e lembrou-se da Bíblia que sua mãe lhe havia dado, ajoelhou e leu o Salmo 91:

“Aquele que habita no abrigo do Altíssimo,
E descansa à sombra do Todo-poderoso
Pode dizer ao Senhor:
Tu és o meu refúgio e a minha fortaleza,
O meu Deus, em quem confio...”

Antes de terminar de lê-lo, foi abordado por um policial que ordenou que saísse da cela, tirasse a roupa e descesse até o térreo, onde outros detentos estavam nus.

Diante de uma cena horrível foi obrigado pelos policiais a carregar 25 cadáveres. Viu os companheiros de cela serem metralhados no massacre que matou 111 homens - segundo registros oficiais - tão pobres e negros quanto ele. Ao final de tudo, após o massacre, percebeu que estava vivo. Foi transferido para a penitenciária de Mirandópolis, onde ficou durante um ano e em seguida conseguiu a condicional.

Triste notícia
20 de abril de 1995. Fui visitar uma namorada que morava na favela de Iporanga, na grande São Paulo. Eu sabia que os traficantes de Iporanga me conheciam e começaram a ficar de olho em mim. “Estava brincando com fogo”. Usando uma moto Honda 750 Four, cheguei ao barraco de minha garota e naquela hora senti que algo estranho ia acontecer. João Loro, um traficante rival, veio até onde eu estava, sacou uma arma e começou a atirar. Foram quatro tiros, sendo o primeiro na nuca, outro no braço esquerdo, um terceiro tiro na espinha e o quarto na perna, e disparou ainda mais dois tiros que não me acertaram e caí no chão.

Quando tentei me levantar para pegar a moto, percebi que não tinha mais forças nas pernas. Caí novamente e comecei a tremer e ao mesmo tempo suava, e sentia calafrios. Faltava-me o ar, meu coração acelerou e o pânico tomou conta de mim. A vida que corria dentro de mim se desvanecia e lentamente perdia o controle dos sentidos. O João, vendo que não havia morrido, aproxima-se, carrega outra vez a arma, dispara mais seis tiros. E, por um “milagre” o revólver não consegue detonar as cápsulas. Tentou novamente, e não conseguiu. E disse:

– Vou embora Ney. Tu é ruim mesmo. Nem pra morrer tu serve. Tu tem é parte com o diabo, vou cair fora.

Algumas pessoas que moravam ali na rua assistiram tudo. Uma ex-namorada que morava próximo ficou sabendo e buscou uma perua velha. Reuniu alguns homens e me colocaram dentro de qualquer maneira. Assim, conseguiram me levar para o Hospital da Faculdade OSEC, em Santo Amaro. Os médicos fizeram uma cirurgia de emergência que duraram quatro horas. Após três dias de UTI, recebi uma junta médica e a assistência social para me informar a triste notícia que iria ficar paraplégico e teria que usar uma cadeira de roda para o resto da vida.

Ex-detento
Quem vê Sales sentado numa cadeira de rodas, vestido em seu terno de cor marrom e camisa branca impecável Pierre Cardin, cabelo e barba bem feitos, conversando com as pessoas sobre assuntos cotidianos e administrativos, dando conselhos e às vezes contando piadas - sequer imagina que já passou por tantos revezes. Pode ser considerado um Herói, pois se recuperar de uma vida de crime e drogas é uma vitória que poucos conseguem.

Quando terminou de cumprir sua pena, buscou integrar-se na sociedade. Mas, devido à descriminação por ser ex-prisidiário, negro, ter antecedentes criminais e não ter o segundo grau completo foi impossível ingressar-se no mercado de trabalho. Devido a tantos preconceitos e sem chance de ser um cidadão comum, decidiu voltar aos delitos e traficar drogas. A cadeira de rodas não foi empecilho, conseguia se locomover para todos os lados com tremenda agilidade e habilidade. Sua função era ser a isca para roubo de carga e num desses assaltos foi preso novamente e foi parar no 25º Distrito de Polícia de Parelheiros. Ali recebeu a visita de um grupo de missionárias evangélicas, e lhe fizeram uma pergunta que iria mudar sua vida:

– Aceita fazer um tratamento de recuperação para deixar as drogas?

Respondeu que sim. Após sair da prisão de Parelheiros foi para a casa de recuperação Liberto pela Palavra, em Jundiaí, SP. Na situação de ex-detento permaneceu cinco anos recebendo tratamento na clínica, localizada no bairro Rio Acima. Ao sair, criou seu próprio centro de recuperação, para tal empreendimento recebeu apoio financeiro e jurídico do Dr. José Carlos Marion e da Igreja Comunidade Cristã. Dessa forma, pode alugar uma chácara na estrada do Mursa, em Várzea Paulista, onde abriu o Centro Terapêutico Educacional Cristão para recuperação de dependentes químicos.

Hoje, aos 40 anos, é convidado para proferir palestras em escolas, universidades, comunidades e igrejas sobre Direitos Humanos, Discriminação, Criminalidade e Prevenção às drogas. De cor escura, dentes brancos, barba encravada e sem curso superior não mede esforços para atender quem bate à sua porta. Da escória da sociedade tornou-se uma pessoa influente e conhecida pela capacidade de superação. Atualmente exerce a função de Titular e Delegado do Conselho Municipal de Assistência Social da cidade de Várzea Paulista/SP.

Certa vez, às 4hs da manhã, do dia 04 de dezembro de 2003, toca a campainha da Casa de Recuperação. O segurança ao atender as pessoas que estavam no portão se depara com um quadro muito triste. Sidney ao sair para ver o que estava acontecendo vê um homem que tinha um lenço amarrado no pescoço e que mal conseguia falar. Ele tinha câncer e o tumor externo estava apodrecendo sua carne. Havia bichos comendo o corpo daquela pobre vida. Era mais um excluído que batia a sua porta pedindo socorro. Foi aceito sem cerimônias e levado para o quarto de Sidney, porque os outros internos não queriam dormir com ele por causa do mau cheiro - era carne apodrecendo em vida -Tomou a decisão de ajudá-lo e passava boa parte dos dias ao seu lado. Colocou a cadeira ao lado de sua cama, e fazia a terapia de colocar carne crua sobre seus ferimentos. O Hospital São Vicente da cidade de Jundiaí dava os medicamentos necessários, mas não aceitava interná-lo. Numa manhã, José Fernandes Pires perdeu o resto de vida que lhe sobrava. Porém, como quem adivinha que seu fim estava próximo, chama Sidney e numa conversa balbucia algumas frases de agradecimentos: Obrigado por tudo, pelo banho e a comida quente. Pela cama macia e o cobertor. Muito obrigado! Você me deu a dignidade que nunca imaginei que um dia pudesse ter no final de minha vida.